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Uma expressiva série de exposições (cerca de 45 promovidas ou apoiadas pela Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República – CNCCR) assinalou, por todo o País, durante 2010 (com algumas delas programadas também para 2011), o I Centenário da República em Portugal, pontuando o ano com pretextos para uma reflexão, a um século de distância, sobre os ideais difundidos durante um dos períodos mais conturbados da nossa história recente.

Em Lisboa, vimos cinco dessas exposições: Povo, no Museu da Electricidade, Viva a República! 1910-2010, na Cordoaria Nacional, Viajar e Corpo, nos torreões nascente e poente (respectivamente) na Praça do Comércio e Res Publica: 1910 e 2010 face a face, na Fundação Gulbenkian.1

Povo, tendo como comissário coordenador José Manuel dos Santos, apresentava uma montagem assinada por António Pedro Louro, Gonçalo Prudêncio, Pedro Ferreira e Rita João.

Articulada em nove capítulos, com sugestivos títulos tirados do poetário nacional (“Vamos ver o POVO”; “O POVO é quem mais ordena”; “POVO, POVO, eu te pertenço”) ou simplesmente de slogans e “frases feitas” (“O POVO é sereno”; “Diz-me quem és”; “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”; “Se isto não é o POVO, onde é que está o POVO?!”), a exposição interrogava-se sobre “de que falamos quando falamos de Povo”, procurando, nos vários sinais da produção cultural do último século, olhar a história “a partir da actualidade”, olhar a passagem do conceito de Povo, “de objecto a sujeito, de particular a universal, de súbdito a soberano”.

João Pinharanda (comissário artístico) escolheu, recorrendo à colecção EDP, mas também a mais de 60 “emprestadores” (entre entidades, museus, galerias de arte, coleccionadores ou artistas), um notável conjunto de peças originais de diversas épocas e linguagens (de esculturas a pinturas, de fotografias a vídeos ou “instalações”) que, a propósito das várias temáticas que os subtítulos inspiravam (ou vice-versa), foi encontrando o seu lugar nas nove secções da Exposição.

Diana Andringa, comissária para o audiovisual, fez também uma recolha bastante feliz entre o espólio da Cinemateca (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento – ANIM) e o arquivo da RTP, de documentos fílmicos que, acompanhando o século XX, nos iam sugerindo os pontos mais fortes e expressivos da passagem desse mesmo século por Portugal.

O desenrolar plástico da exposição fez-se com grande agradabilidade e surpresa, num percurso arquitectónico bastante elegante e variado, por entre as pesadas máquinas e estruturas industriais da Central Tejo, um mundo pela força própria sempre difícil de mobilar. Neste caso, tudo foi muito ardilosamente contornado, entre as paredes biombo que seccionavam, com tonalidades diferentes, o espaço (alguns com tecto, o que ia descomprimindo a obsessão das estruturas omnipresentes), reunindo as peças originais ou inesperados suportes para o audiovisual de um modo sempre ajustado, não cansativo, como que passeando o visitante por uma gigantesca “instalação”, desenvolvendo-lhe a curiosidade, “premiando-a” sempre nos passos seguintes, na descoberta seguinte, na “secção” seguinte. 

As “interrupções” também eram acertadas. E recordemos a secção dedicada ao “trabalho” (“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”), onde, numa límpida sala azul coberta por sheds fabris, se sucediam imagens impressionantes de calceteiros a fazer os passeios das ruas de Lisboa ou jornaleiros agrícolas em árdua labuta no Douro ou desprotegidos operários da construção civil, perante o olhar “burocrático” da secretária de Paulo Mendes (A ninhada, 1993), com significativas resmas de A4, rosa e laranja, empilhadas.

De tal modo que, ao chegarmos ao momento em que (em qualquer exposição) o excesso de informação nos começa a pedir uma pausa ou o regresso posterior, nesse momento em que já só se pede um café ou um cigarro, nesse momento em que pretendemos a reflexão descansada de uma cadeira a ver o Tejo, nesse momento, a Exposição chegava ao fim e podíamos comprar as várias publicações a propósito da temática Povo, coordenadas por José Neves (comissário científico).

O grupo de três mostras, Viva a República! 1910-2010, comissariada por Luís Farinha, Viajar: viajantes e turistas à descoberta de Portugal no tempo da I República, comissariada por Maria Alexandra Lousada e Ana Paula Pires e Corpo: Estado, Medicina e Sociedade no tempo da I República, comissariada por Maria Rita Lino Garnet, da responsabilidade directa da CNCCR, tiveram arquitectura de Daniela Ermano e João Carrasco e design (gráfico) do atelier de Henrique Cayatte. Se se enfatiza o design é porque neste caso ele foi de tal modo presente no atravessar expositivo, que se sobrepunha (ao contrário do caso anterior) ao percurso arquitectónico, aqui quase já só “funcional” e ao serviço de uma inventividade gráfica transbordante.

Na realidade, os materiais, neste conjunto, ao contrário do desfilar de originais presentes em Povo, eram, sobretudo, reproduções (de fotografias, de desenhos, de pinturas, de anúncios, de artigos de jornais ou revistas, de páginas ou lombadas de livros, de letreiros, de fachadas e de toda a sorte de testemunhos impressos, cuja mistura em tamanhos diversificados, quase sempre maiores que o original, constituíam o atractivo maior do deambular inteligentemente proposto). Todas estas ilustrações, sistematicamente acompanhadas por legendas, títulos, dizeres, mensagens, didácticos parágrafos inteiros (subscritos por ensaístas contemporâneos convidados para os catálogos), ou registos de época, num trabalho de lettering notável, sucediam-se fáceis e agradáveis de compreender, perceptíveis e sublinhantes dos conteúdos escolhidos pelos comissários.

Percorrer estas exposições foi como entrar dentro de um catálogo de enormes proporções e caminhar ao longo das suas páginas, inebriados pela leitura, pela correspondência com as imagens escolhidas, pela surpreendente montagem. Aqui e ali, momentos totalmente inesquecíveis e de grande impacto lúdico sobre o público, nomeadamente o infanto-juvenil (o comboio eléctrico que circundava o placard pleno de documentação relativa ao Sud-Express, à Companhia Internacional dos Vagões-Leitos ou aos bilhetes de caminho-de-ferro com origem na Europa e destino em Portugal, por exemplo, em Viajar, ou a surpreendente e inesperada “sala das trincheiras”, evocativa da presença na Primeira Guerra, em Viva a República! 1910-2010), transformavam estes “catálogos habitáveis” em cenários inquietantes e cinéticos, onde os grafismos se multiplicavam fazendo dos visitantes, espectadores e actores, parte mesma da complexidade das mostras.

Res Publica: 1910 e 2010 face a face, na Fundação Gulbenkian, voltou a posicionar-nos, com maior serenidade e como o título indiciava, em diálogo, a partir de peças artísticas originais, aqui, numa intencional “conversa” entre a produção na época do advento da República e aquela mais contemporânea.

Comissariada por Helena de Freitas e Leonor Nazaré e com desenho expositivo (sóbrio e institucional) de Margarida Grácio Nunes
e Fernando Sánchez Salvador, a exposição da Gulbenkian, ao contrário das restantes, talvez tivesse pecado por ser mais curta e “rápida”. Ficou-
-nos um pouco a “fome” por maior número de comparações, por maior número, ainda, de momentos de acerto e “face a face” [(magnífico o diálogo entre as fotografias de Joshua Benoliel e os retratos de lojistas “contemporâneos” por Luísa Ferreira – 33 imagens da série Há quanto tempo trabalha aqui? (1994-2005) – ou a surpreendente localização do O fado de José Malhoa (1910), vigiado de perto por Severa de Francisco Vidal (2007)].

Em Portugal produzem-se exposições notáveis, é o que sobressai deste ano mais excepcional de pretextos e maratonas. A modernidade dos vários actores e artistas no manuseamento dos meios mais contemporâneos (audiovisual, design de luz e de som), somada à maturidade das artes gráficas e das arquitecturas de cena, tudo isto ao serviço de programadores, especialistas e comissários bem informados, cultos, abertos e criativos, trouxe-nos para um patamar, à entrada dos anos 10 deste novo século, com um tal grau de exigência, que posiciona estes notáveis exemplos “face a face” com o que de mais actual se propõe no resto da Europa e do Mundo.|

 


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